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Foto do escritorYuri Cidade

Só morre aquilo que se esquece

O som era leve como a manhã silenciosa de domingo. A garganta seca me lembrava das doses alcoólicas da noite passada. Fumei um cigarro. A luz que entrava pela janela da cozinha cegava meus olhos, inibindo-me de enxergar a realidade. O dia só começa quando finalmente estabilizo meu olhar e minha sanidade.

Aquele dia fazia calor. Na rua apenas alguns teimosos ou religiosos. Sentia o perfume de Elisa ainda pelos cômodos da casa. As noites não tem mais fim, desde que ela pôs fim em tudo, inclusive na sua própria vida, dentro do box, com a minha navalha favorita.

Fantasmas não existem? Bobagem. Vivemos com fantasmas o tempo todo. Só batizamos eles com o nome de: memória. Um presente que ficou no passado e que nunca vai ser futuro. O tempo é como uma grande faca: Penetra em você até bater no cabo. E quando você se acostuma com a dor, alguém torce e puxa ela ferozmente, te fazendo sangrar até morrer no seu tapete, afogado em si mesmo. O tempo é isso. Uma morte romantizada.

Nunca fui dos mais românticos, tampouco eu e Elisa mantínhamos uma relação monogâmica. Porém,algo nela me dava certeza de que a vida guardava algo bom pra todos nós.

Vejo suas pinturas inacabadas no porão, seus sambas mudos e o sorriso gélido. Era como se parte do tempo se perdesse em uma dimensão, a qual não houve continuidade. Ainda guardo seu vestido e a minha camiseta de banda que ela adorava.

Mas entre tanta melancolia, ainda arrumei tempo para a boemia. Não sou um homem que responde tudo com responsabilidade. Tampouco tenho algum resquício de pudor quando se trata de sarar feridas.

Alguns dias após, ou melhor,na tarde após o enterro de Elisa, me enfiei em casa com 3 litros de uísque barato, cigarros da marca que ela amava e alguns baseados que ela mesma enrolou em sua última noite aqui. Era apenas eu e o velho disco de samba. Entre lágrimas e risadas de desespero, procurava entender o porquê de sua morte…

Lá pelas tantas, desmaiei pelo sofá  e tive um sonho bem esquisito. No pesadelo, eu era a navalha. Sentia o corte sendo feito nos pulsos de Elisa, enquanto as lágrimas rolavam misturando-se com o sangue que escorria. Apesar de ser o causador da morte, no sonho, foi como ter um orgasmo. Pois pude sentir cada resto de vida dela passando por mim.

Acordei com uma ressaca na manhã de domingo. A realidade era sempre um soco no saco. Te fazia embaçar e gemer como um porco no abate.

– Você está aí? – perguntou-me meu amigo e agente

– Depende.

– Ora, homem. Deixa isso pra lá. Precisamos de algo novo para a próxima semana. O pessoal da série já tá cobrando as próximas cenas.

– Vai se foder. Como eu vou escrever?

– Como sempre fez. Sua mente nunca foi sã, sua vida nunca foi fácil e seu coração sempre fora o primeiro item de troca por um rim novo.

– Sinto falta dela, Artur.

– Todo sentimos. Mas por favor, escreva. Ou nem pro caixão de Elisa teremos dinheiro.

– Tá bom. Tá bom. Vou ver o que posso fazer.

À noite, me embriaguei como um imbecil e escrevi a porra do capítulo da série.

No outro dia, entreguei o roteiro e disse que se fizessem qualquer alteração eu tocaria fogo no set de filmagens. Passei no mercado, comprei alguns ingredientes e cozinhei o prato favorito de Elisa. Servi os dois lugares da mesa e enchi as taças com o melhor vinho da cidade.

Parado com os talheres nas mãos, com os olhos fixos na TV, assisti a cena que havia escrito: era o monólogo de uma moça apaixonada que cantarolava sua agonia pela casa dançando, sorrindo pro nada. A moça rodou, pirou e engoliu a maior dose de remédios. Em seguida cortou os pulsos, morrendo com as mãos esticadas o vidro.

Dei um gole no vinho e olhei pro banheiro. Vi as mãos ensanguentadas de Elisa escrevendo no vapor do chuveiro: A morte só existe pra quem não se tornou memória.

Yuri Cidade

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