Cada vez que ouço frases do tipo “Aproveito a vida porque é uma só” ou “Quero deixar um legado”, me dá uma extrema vontade de vomitar. Lembro de Oscar na mesma hora.
Oscar era um amigo meu de infância. Formávamos uma dupla perfeita. Ele era impulsivo e eu uma mente megalomaníaca em forma de criança. Traçava planos arriscados, sendo pra zoar alguém ou simplesmente desafiar Oscar. Ele era capaz de tudo. Com o passar do tempo, Oscar ficava cada vez mais ativo. Hiperativo. Íamos nos parques de diversões que vinham pra cidade, e enquanto eu flertava até com a bilheteira, Oscar andava em todos os brinquedos mais arriscados. Nessa adolescência foi nítido perceber o vício que ele tinha desenvolvido: adrenalina. Se fosse possível voar em um dragão pendurado no testículo esquerdo dele, Oscar faria. Porém, não ficamos jovens pra sempre. E nesse intervalo temporal, nos afastamos. Fui pra faculdade e ele foi buscar mais adrenalina. Foram longos anos, os quais os contatos com Oscar ficaram cada vez mais raros. Ele pulou de asa-delta, Bunge jump e todo e qualquer exporta que arriscasse a vida. Certo dia ele me ligou e perguntou: – Tu se sente vivo? – Até demais. – respondi – As vezes quero me sentir morto e não consigo. – acendi um cigarro. Traguei, soltei e falei – É tipo usar óculos. Aquela porra fica pendurada na tua cara, te passando todas as imagens da vida em HD. Chega certa hora que é tão chato notar tudo, assitir, rebobinar que é necessário arrancar os óvulos e deixar que a miopia diminua seu campo de visão, limitando-se a você mesmo. Praticamente só escutar. – Mas e a intensidade disso tudo? Não consigo entender como você pode ter tanta emoção na vida, se seus maiores feitos são páginas de papel. – Ah, Oscar! Pelo amor de Deus, né. Comportar-se como maluco também não é um feito pra eternidade. – Eu quero um legado sabe. A vida é só uma. – Por isso que eu não arrisco ela na beira de um penhasco. – Você nunca entenderá… – E nem quero. Cada louco com sua mania.. A conversa terminou num tom seco. Daquele dia passaram-se exatamente 10 anos sem contato com Oscar. Cheguei a procurar a família dele pra conferir se tava vivo, e numa dessas ligações que fazia para a mãe dele, Dona Vera, a mesma disse-me: – Ai guri! Não sei onde o Oscar se meteu dessa vez. Saiu de casa com a roupa do corpo e faz 3 dias que não aparece. Liguei pra polícia e tudo já. Mas nada de encontrá-lo. Ele tá cada dia mais corajoso. Se joga na frente de carros pra desviar em cima da hora, sobe em parapeito de prédios e dica se equilibrando, escala muros e invade lugares abandonados. Uma loucura. – Puta que pariu, Vera. Eu vou ver o que posso fazer. As ruas que frequentei com Oscar sempre sabem de tudo. Procurei aquele maluco por todos os becos, vielas e lugares que possíveis mortes poderiam acontecer se você corajoso o suficiente. Nada. Decidi mudar de estratégia. Lancei na internet uma pergunta sobre onde podia-se encontrar prazer e adrenalina na cidade. Choveu de bocas-de-fumo e puteiro. Mas o que me chamou a atenção, é que listaram um circo. Logo pensei que ele poderia ter virado trapezista, equilibrista ou voluntário pra ser alvo do atirador de facas. Fui até o lugar. Já estranhei. A lona era completamente preta. Uma placa em frente à bilheteria anunciava: Haverá show essa noite. Entrada franca. Pensei: dei sorte. Dei uma volta pelo local mas não achei ninguém. O circo parecia um velório. A noite chegou e lá estava eu sentado numa arquibancada. Tinha no máximo 15 espectadores. Para meu horror o show mostrou-se um verdadeiro antro de bizarrices. Pessoas eram suspensas por ganchos em suas peles, amarradas e chicotadas, queimadas com ferro e tudo que você possa imaginar. O impressionante é que elas estavam lá de espontânea vontade. Sentir-se em perigo ou alimentar-se da própria dor, trazia uma espécie de orgasmo para eles. Notei que os espectadores tinha reações absurdas. Masturbavam-se, gritavam, ofereciam-se para algum número. Estava pasmo. – E agora, nobres espectadores, traremos um experiência de quase morte. Sentirão a vida indo embora dolorosamente , rezando por um último milagre que o salve. Apresento-lhes A forca. Tudo ficou escuro. Quando finalmente consegui enxergar, um homem acorrentado, tranjando apenas um capuz de carrasco, estava sobre o banquinho e com o pescoço no nó. Por seu corpo haviam furos e queimaduras. Segundos antes de ele próprio chutar seu banquinho, percebi que era Oscar lá. As tatuagens o denunciaram. Saltei que um maluco, invadi o picadeiro e segurei Oscar para que não asfixiasse. O som das vaias inundou o lugar. Ele implorava pra que o deixasse, mas jamais soltaria ele. Conclusão: fomos postos pra fora do lugar, porque supostamente invadimos a privacidade e descrição dos frequentadores. Consegui arrastá-lo para casa e ali foi o momento que Oscar entrou em choque. Emudeceu, fixou os olhos e foi para o banho. Saiu, vestiu-se, sentou na frente da TV e ali ficou. Tentei falar com ele, mas não respondia. Não respondia ninguém. Comia, bebia, ia ao banheiro e voltava pra tv. E assim passaram-se uns meses e fui até a casa de Dona Vera. – Ai, meu filho! Não sei mais o que fazer com o Oscar. – Porra. Onde ele se meteu de novo? Não sei se consigo salvar ele duas vezes. – O pior é que ele está em casa. Só fica em casa. Não faz nada além disso. Não fala, não gesticula, nada. É um zumbi que faz o necessário pra continuar respirando. Pra agravar tudo isso, ele está de cama. – Mas é grave? – Não sei. Nenhum médico descobriu o que ele tem. Dia após dia visitei e tentei contato com Oscar. Vi ele definhar naquela cama. Apesar de comer e se manter “saudável”, a mente dele tinha comido sua carne. Uma espécia de auto-antoprofagia. Não sei que sonhos ele tinha dentro daquele cérebro. – Porra, Oscar! – falei em um desses dias que eu não aguentava mais – Já não sei mais o que fazer. Cê era um cara super ativo, mas da noite pro dia virou uma pedra em cima dessa cama. Mal mexe seus olhos. Não aguento mais ver isso. Sua mãe não dorme faz 3 dias. Ele mexeu os olhos em minha direção. Olhou-me por uns 15 segundos sem sair do lugar. Era como se penetrasse em minha mente. Aqueles malditos olhos tristes, sorriram sem o lábio. Nada de mostrar dentes. Mas eu sabia que estava sorrindo. – Afinal, que diabos você tem, cara? Ele pegou uma caneta e papel. Estava totalmente exausto. Aquele jovem hiperativo parecia um velho decrépito. Rabiscou apenas uma palavra e me entregou: “Desgosto”. Morreu antes de eu conseguir perguntar o que significava aquilo. Oscar faleceu de desgosto. Sua vida intensa e única não conseguiu vencer a morte dessa vez. Já não tinha mais forças pra isso. Ele queria de legado e conseguiu. De um jeito triste, mas marcou sua existência. Não adianta buscar o incomparável durante a vida inteira. O legado que fica são os segundos que precedem a própria morte. Todo dia uma palavra diferente num caderninho de cabeceira que tenho. Não sei o que pode acontecer amanhã Palavra de hoje: intensidade.
Yuri Cidade
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