Abri aquela garrafa, com uma dificuldade tremenda. Também, o saca-rolhas sumiu e tive que improvisar com dois garfos e um parafuso. Incrível como as situações extremas nos tornam uma espécie de Magaiver. Servi uma taça, leia-se: copo, de vinho. Não era o melhor, nem o pior. Era daqueles que te dão a esperança de que aquilo não vai te matar instantâneamente. Me dirigi até a janela e olhei o movimento. Pessoas indo e vindo. Universos se chocando e não percebendo. Pobre humanidade, não sabe o poder da interação. Nunca fui um sujeito comum. Desde pequeno já mostrava sinais de que meu cérebro ansiava mais do que tinha. Crianças “normais” brincavam de pega-pega, jogavam bola e etc. Já eu, as irritava com minhas ideias mirabolantes dê supercontextos para qualquer brincadeira simples. Assim, eu corria pelo jardim de minha humilde casa, imaginando aventuras épicas. E foi aí que conheci João, meu amigo imaginário. Minha mãe levou-me em diversos especialistas, exames e tudo mais, porém a resposta era sempre a mesma. – Seu filho é perfeitamente normal. Só é excêntrico e imaginativo. Com o passar do tempo, esse amiguinho imaginário irá sumir. E então, passaram-se os anos. A escola, adolescência, paixões, imersão em loucuras e desatinos me obrigaram a fingir que João não estava ali. A existência dele era uma afronta ao mundo da sanidade. O julgamento da sociedade para coisas além do material é sempre cruel. Lembro-me que até mesmo depois de transar, acendia um cigarro e João estava lá apertando minha mão. Ia comer e ele sentava comigo a mesa. Jamais estive sozinho. Era meu confidente, amigo, filósofo, psicólogo, pai, irmão e espelho. Sempre me inspirei nele, pois pra tudo ele tinha uma resposta. Enquanto tomava o vinho, João sentou-se na soleira da janela a me observar. – Que tanto me olhas, homem? Parece que nunca me viu. João sorriu e disse: – E você já se viu? – Que porra de pergunta é essa? – Sim. Você já parou pra se ver? – Óbvio! Tenho espelho em casa. Que diabos você quer agora? – Oras! Não estou falando do seu reflexo, e sim de questionar a si mesmo. As vezes me questiono sobre mim. – Para de besteira, João. Sua existência só interessa a mim. Lhe criei desde pequeno. Médicos diziam que eu era normal, mas excêntrico. Benzedeiras diziam que eu era um espírito perturbado. Até mesmo as crianças da escola diziam que eu era doente. Você nunca me julgou. Foi sempre meu melhor amigo, e é por isso que você está aqui. – Cê acha que eu não poderia ser amigo de outra pessoa? Pois saiba que sou mais do que seu ombro. – Não quis dizer isso… Ficamos mudos. Olhávamos pela janela imóveis. Em tantos anos, nunca havíamos ficado com um silêncio vazio entre nós. Seria possível que uma relação imaginaria pudesse desgastar? – Escuta, João. Não tive a intenção de te ofender. – Você não me ofendeu. Tudo que fazes é pra si mesmo. Sou teu reflexo, não sou? Então de que adiantaria eu me importar ou não? Você decide as coisas aqui. – Por que isso agora, cara? Estou pedindo desculpas. – Não peça desculpas a mim. Deixa isso pra lá. Vou pegar uma cerveja. – levantou e saiu andando até a geladeira. Abriu uma cerveja e tomou num só gole. Olhou-me de longe e assentiu com a cabeça. Voltou até mim e disse: – Meu grande, amigo. Talvez nossas existências não nos bastem. O mundo é um moinho, o qual deve sempre ser abastecido com material humano. Tudo tem que ter um sentido, um significado, um apelo. Porra, por que o homem não pode ser apenas ele mesmo? – Verdade… – Então, cara. Qual o próximo passo? – Não sei. Me falta sapiência pra entender certas coisas, tanto que agora questiono-me sobre minha própria existência. De que sirvo? Pra que sonho? Ou por que escrevo? – Pelo mesmo motivo que conversa comigo: necessidade de sentir. Congelei. O frio me correu na espinha, arrepiando os pelos de meu pescoço. Era verdade. Precisava sentir pra sentir-me vivo. Mas até onde a vida indica que se está vivendo? Olhei para minhas mãos e questionava como tudo foi formado em mim. Precisava de uma prova. Se há Deus ou se era um tudo um grande acaso, baseado em nossas escolhas. Minha mente ferveu. – Não adianta. – falou João – Todos devem partir uma hora pra encontrar a vida em outros lugares. Se tivéssemos que pertencer a um só lugar, ou a um só amor, teríamos nascido árvores, com suas raízes fincadas bem fundo. Imóveis feito uma estátua, porém respirando. Apenas existindo. E é por isto que lhe pergunto novamente: De que adianta nossa mera existência? Não consegui responder João. Uma lágrima me veio, junto com o mesmo arrepio de antes. Respirei fundo e vi que estava sem cigarros. – Vou comprar cigarros, João. – Ok. Vá existir, velho amigo. Desci as escadas, sai pela porta da frente e vi a rua. O calor e o caos. Dobrei a esquina e nunca mais voltei. Naquele dia, deixei de ser o amigo imaginário de João. Existi.
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