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Foto do escritorYuri Cidade

O Intrigante Caso de Dr. Hélio.

Se a vida não fosse tão bizarra, suas alegorias seriam tão inúteis quanto uma cinzeiro para um reabilitado. Assim como toda recaída, a sobriedade é uma questão de oportunidade, ou de mera resistência a realidade. Esse monólogo explica cada baforada no éter, da sala de cirurgia. Dr Hélio era um viciado, mas além disso, também tinha gostos peculiares, não tão aceitos pela sociedade brasileira tradicional. Anestésicos e fármacos eram só um disfarce para aliviar sua sede, até estar às escuras. Por trás de cada tragédia, um novo caso.

-Então, Dr. Hélio, posso assistir ao procedimento? Tenho pressa em saber os resultados. – perguntei, sacando um caderninho para tomar nota.

-Não sei se lhe recomendo. – parecia nervoso com alguma coisa. – Não costumo ter espectadores e a autópsia  é um processo delicado, precisa de concentração e precisão.

– Não vou me mover ou falar. Apenas quero a confirmação o quanto  antes.

-Ok, se o detetive insiste… – falou de certa forma nervosa e começou a preparar os instrumentos.

O homem parecia inquieto, cortava e remexia o corpo. Entre uma incisão e outra, ele me olhava por cima de seu ombro esquerdo, como se checasse meu comportamento. Um rápido, e penetrante olhar de quem escondia algo íntimo. Um infinito de sensações estranhas e intimidadoras percorriam cada mililitro de sangue que meu coração bombeava. A sala parecia ter sido abafada com um gás invisível, capaz de deixar você paranoico. Notei que não estava em meu juízo perfeito.

-Eu vou ali fora fumar um cigarro. – virei e sai. O médico nada disse.

Parado na porta do corredor acendi o cigarro e a sensação dissipou-se gradualmente até chegar no filtro. Um alívio tomou conta de mim. Talvez tenha sido sinais dos vícios, ou alguma abstinência psicológica, porém os olhos daquele médico intrigavam meu ser. Tudo bem que não era a cena mais apropriada para querer se sentir bem, tampouco que outro esteja bem.

Fiquei mais uns dez minutos ali fora. Precisava daquele relatório logo. No momento que ia tocar na maçaneta, ouvi a voz do médico falando:

-Perdoados aqueles que pecam em nome de vos. – e o silêncio reinou por alguns segundos – A carne é matéria a ser consumida pela tua luz. Brindem o banquete divino. – nada se ouviu.

Abri a porta e o médico derrubou uma bandeja. de órgãos retirados do defunto.

-Caralho, detetive. Custa bater antes de entrar? Parece que viu o demônio.

-Eu.. ouvi vozes aqui? O senhor estava falando com alguém? – comecei a procurar pelo necrotério, de certa forma paranoica.

-Está drogado? Ou está louco mesmo? Tem eu e aquele cadáver aqui, e digo que ele é um cara de poucas palavras, se é que me entende. – e deu uma risada debochada.

-Faz dias que não durmo bem…

-Não vou te prescrever remédios, se é a intenção com tal papo. Toma aqui teu relatório e pode ir. Tenho mais o que fazer. – foi até a porta e gritou – Marlene! Preciso de material de limpeza aqui e alguém pra ajudar.

Peguei os papéis e sai zonzo daquele hospital. Tudo parecia ter me causado um impacto psicológico. Um grande baque. Sai andando pela rua a notar muito o que acontecia ao meu redor. O peso do mundo estava em minhas costas, e esse caso nem era tão importante. Um coitado qualquer que fora executado por dívidas de com um agiota, mas sua mulher jurava ser uma amante.

Quando parei de andar e olhei ao redor, não fazia a mínima ideia de onde estava. Todas as pessoas que haviam ali eram a mesma: um homem alto, com Grossas sobrancelhas, rosto fino e liso, sorrindo com os olhos cravados em mim.

-Que porra…

-Está sem palavras, detetive? O gato comeu sua língua? – e a imagem de um gato formou-se no colo daquele homem.

-Quem é você? Onde estou?

-Perguntas insignificantes. Fariam mais sentido se fossem: “Por que estou aqui?” “Por que é você?”.

-O que fizeram comigo???

-O que você fez consigo?

Olhei para meus braços e eles sangravam. Cortes suicidas haviam sido feitos profundamente em meus pulsos. Senti algo na boca e cuspi: uma lâmina de barbear. Novamente reparei ao entorno e só vi as ruas vazias e meu sangue escorrendo para o bueiro, perdia as forças. Desesperado aceitei a morte e perguntava aos céus: “Como cheguei a isso tudo?” Fui deitando aos poucos e acima de mim via apenas o homem, indo com uma navalha direto ao meu pescoço.

Acordei. Suava frio. Outro pesadelo seria? Pensei em parar de beber. Esfreguei os olhos e tentei lembrar-me de quando sai do hospital. Tudo era um borrão. Recordava apenas de flashes do pesadelo. Olhei no relógio e constatei que havia dormido por 3 dias. Não era possível. Liguei a TV e realmente o jornal transmitia a mesma data que havia no relógio. Me vesti rapidamente e fui correndo ao meu escritório. Algumas cartas na porta, jornais e um envelope amarelo, sem identificação. Olhei para os lados inutilmente procurando se haveria por ali o entregador. Entrei e sentei-me para ler o que havia ali. Dizia:

“Eu sei o que você viu. Não investigue ou terá um fim pior que a gaveta do necrotério. Matéria transforma matéria.”

Intrigado, reagi diferente de como costumo reagir quando sofro ameaças. Esta não era a primeira, nem seria a última, mas inegavelmente tratava-se da mais bizarra delas. Tentei buscar na memória, mas a única sequência de fatos que me lembro era a de ter ido ao necrotério falar com Dr. Hélio. Óbvio que eu iria investigar, pois ninguém fica esperando a morte.

Já eram mais ou menos umas onze da noite e fazia duas horas que estava em frente ao hospital esperando Dr. Hélio sair. Nada. O carro dele continuava estacionado na sua vaga privativa. Teria que dar um jeito de entrar, foi então que vi uma enfermeira ir atrás do hospital fumar. Segui a mesma.

-Boa noite, moça. Desculpa o incômodo, mas você sabe me dizer se o Dr. Hélio se encontra? – perguntei

-Que susto! – disse quase deixando o cigarro cair. – Boa noite. Dr Hélio? Ele tá na reunião semanal com o Conselho.

-Conselho de Medicina?

-Não… – parecia nervosa. – O Conselho da cidade nova..

-Cidade nova??

-Não sei o que é. Apenas escutei isso quando passei algumas vezes pela porta durante meu expediente.

-E onde eles estão se reunindo? Recebi um convite dele pra vir até aqui. – menti

-Na sala de reuniões do hospital, no último andar. Mas não diga que fui eu que avisei. Tenho medo. – jogou o cigarro e correu pra dentro do hospital.

O problema era chegar até a tal sala. O hospital tinha 4 andares largos e recheados de salas. Era sabido que o último andar era reservado aos assuntos burocráticos do lugar e a ala de pessoas com câncer. Não se tinha muito movimento de pessoas por lá.

Entrei na área de serviço do hospital, onde ficavam os serventes e roupas para lavar. Catei um macacão de faxineiro, uma vassoura, um balde e comecei a perambular pelo hospital. Alguns olhavam desconfiados, mas não davam bola. O fluxo de pessoas era grande para reparar em todos os funcionários, ainda mais quando os serviços de limpeza eram feitos por uma empresa terceirizada. Era comum que não fossem sempre os mesmos.

Passei pelo primeiro andar como um gato, e já no segundo um médico qualquer veio me perguntar:

-Opa. Você tem que como dar uma limpada na sala 12? Não é nada demais. Só um paciente acabou derrubando a bandeja de comida no chão. – disse em um tom amistoso

-Claro… – Não poderia negar e estragar o disfarce – Mas não posso demorar. Dr Hélio me requisitou no quarto andar. Sabe como ele é, né? – tive que montar esse papinho furado pra despistar o médico.

-Aquele velho doente? Olha amigo, se eu fosse você iria preparado.

-Ué, por que?

-Correm boatos por aqui de que ele quer a presidência do hospital. Dizem também que seus planos envolvem pesquisas não autorizadas pelo governo. Mas há apoiadores. Esse cara não me engana.

-Bom, sou só o faxineiro. Se não for serviço de limpeza, não me interessa o que ele faz.

-Isso mesmo. Não se envolva. Coisas ruins acontecem com quem se mete no caminho dele. – Mal sabia ele que eu estava atolado até o pescoço nessa história.

O médico saiu e fui para a sala 12. Bati na porta e falei “limpeza”. Ninguém respondeu. Tentei ouvir na porta e parecia que não havia ninguém. Entrei pé por pé na sala, as cortinas estavam inquietas, se esvoaçando pela janela. A cama estava vazia e tinha a impressão de que não fora usada faz um tempo. Voltei a porta e tentei abri-la, mas de jeito nenhum a tranca se mexia. Grite:

-Ei! Alguém abre aqui. Fiquei preso.

No fundo, como se viesse com o vento que entrava pela janela, uma voz sussurra ao meu ouvido: “Você não devia estar aqui, mocinho.” – e algumas risadinhas debochadas – “Não procure o que você não quer achar.” Neste instante, as luzes piscaram rapidamente e a frente estava minha mãe, como há 25 anos atrás: enforcada no ventilador de teto da sala, enquanto eu, ainda criança, chorava desesperadamente. Essa cena perturbou-me por uma vida toda, pois meu pai sempre jogara a culpa de tudo em cima de minha existência. O filho da puta acabou morto a tiros uns anos depois por conta de uma dívida de jogo.

Aquele cadáver familiar pendia pelo teto e balançava conforme a corrente de ar. Foi quando ela abriu os olhos e sorriu com os dentes pretos e viscosos, uma espécie de gosma caía de sua boca, enquanto gritava:

-A sua vida é minha. – Pedaços daquele gosma preta voaram em meu rosto. – Você foi prometido há 30 anos. Hoje é o dia da cobrança. – Olho para trás e vejo meu pai cravejado de balas, ainda sangrando, e com uma mão cheia de cartas. E ele também falou.

-Apostas altas, trazem grandes dívidas. – Engasgou com o próprio sangue, espirrando pela boca e caiu desfalecido, enquanto as cartas de sua mão rolaram ao chão, revelando serem todas a mesma: Um rei de copas.

Inquieto, corri em direção a porta me joguei para arrombá-la. Caiu no chão como um pedaço de merda, e todos no hospital me olharam. De dentro do quarto, um senhor de uns 80 anos gritou:

-Ele é louco!!! Tentou me matar. – O velho estava de pé na cama, com o lençol amarrado no pescoço, equilibrando-se na beirada para que não viesse a ser enforcado.

Logo os seguranças do hospital foram acionados. Corri para o elevador e disparei minha pistola pra cima, fazendo com que os guardas-costas atirassem-se ao chão, com medo de levar chumbo. A voz suave e irritante não me deixava quieto: “Isso. Venha pra mim, venha. Estou lhe esperando.”

Quando finalmente o elevador parou e abriu suas portas, o corredor a frente mostrava-se vazio. Haviam apenas duas alas: Reunião e Câncer. Fui até as vidraças que davam nas salas dos pacientes em tratamento avançado e nada avistei, a não ser camas vazias e rastros da mesma gosma preta que vira na sala abaixo. Era agora, tinha que adentrar naquela maldita sala de reuniões e acabar com essa bagunça que Dr. Hélio estava organizando. Nunca fui um amante da cosmologia ou de efeitos sobrenaturais, mas a vida havia me mostrado que jamais deve-se duvidar de nada, principalmente da fé das pessoas. Não importa se você é cristão, umbandista, kardecista, ou qualquer outra religião, nada faz de você conhecedor absoluto sobre os segredos deste e de outros mundos. Você é só mais uma molécula lutando pra sobreviver entre outras zilhões e isso não irá mudar. A única certeza que você pode ter é de que somente tu poderás mudar a realidade que lhe envolve, sendo assim, ficar inerte ou em movimento cabe apenas na fração de segundo que leva para você decidir de que modo irá interferir: passiva ou ativamente.

Segurei minha pistola junto ao corpo e abri a porta da sala de reuniões, nela estavam Dr. Hélio, cercado de outros corpos de representantes da Assembleia Municipal. Essas pessoas tinham suas gargantas laceradas e o sangue pingava pela mesa. Hélio estava nu, banhando-se em sangue e entoando um canto incapaz de ser traduzido:

-Não é delicioso o prazer que o poder te dá, detetive?

-Mas que porra é essa!? Considere-se preso, seu sádico! – Apontei a arma

Ele riu e continuou:

-Pra que essa arma, meu amigo? Venha. Junte-se a mim. Sua mãe e seu pai lhe esperam ali. – Apontou para uma grande cúpula de vidro, lotada de partes humanas, atoladas na maldita gosma preta. – Você realmente acha que irá me vencer?

-Os seguranças estão vindo… Eles irão ver essa merda toda aqui e tu vai estar fodido! – Falei nervosamente e tremia por completo. Minhas pernas estavam congeladas no lugar.

Então, ele desceu da mesa e seus olhos eram negros. Jamais saberei explicar o horror que vi diante daquele olhar. Em seu peito estampava a tatuagem de um símbolo com uma cruz e um olho. Se aproximou de mim, pois eu estava paralisado demais para ter reações plausíveis naquela situação de terror absurdo. Olhou no fundo dos meus olhos, encostou a testa no cano de minha arma, sorriu e piscou rapidamente, revelando toda sua retina negra. Bum! Apertou meu dedo, puxando o gatilho. Miolos voaram pela sala, bem como pedaços de gosma preta saíram de sua boca. Os seguranças pularam em mim, visto que empunhava o revolver que havia disparado no corpo do médico caído na minha frente. Me encheram de socos e pontapés, enquanto tentava explicar que não havia sido eu o responsável por tal ato:

-Foi ele! Ele se matou. Ele matou todo mundo. Dr Hélio é um sadista. Um louco! Um praticante de magia negra…

Logo a polícia veio. Algemado, vi apenas um dos médicos responsáveis falando com o Capitão Flávio, da polícia militar. Juro que ouvi o teor da conversa deles:

-O ritual foi finalizado, irmão?

-Infelizmente, ao que tudo indica, não. Precisamos de mais matéria escura. Ainda não é o suficiente. – dizia o médico

-E quanto ao Hélio?

-Ele perdeu a cabeça e achou que poderia ser mais poderoso que o ancestral. Considerava-se o preferido do mestre, mas foi só mais uma marionete de carne e ossos.

-Entendo. Bom, continuarei com meu trabalho, mas não deixem que situações como essa de hoje venha a se repetir.

-Pode ficar tranquilo. Tenho instruções para como proceder daqui pra frente e com os sacrifícios da sala de tratamento ao câncer.

Cumprimentaram-se de jeito estranho e cada um foi pro seu lado. Ainda gritei tentando alertar, mas todos pareciam horrorizados ao me olharem como o psicopata que realizara um banho de sangue.

Hoje me encontro no Sanatório Estadual, há 150 Km do hospital. Ninguém me ouve, tampouco prestam atenção em mim. Já fiz de tudo para ser notado: pinturas, poemas, desenhos, tudo que pudesse expressar o que vivi naquela sala de reuniões. Mas como qualquer mente manipulada, o povo me condenara a esta pena pérpetua de ser tido como louco, isolado em um cubículo com paredes de vidro. A verdade não importa, desde que se mantenha a festa. Não interessa se o seu deus existe ou não. Aqui, a cartilha que se reza é a da ilusão.

Toda noite, os fantasmas de meus pais vem me visitar, inundando de horror meu sono, bem como uma voz incessantemente tenta me dominar:

-Mate-se e prove do poder. – um pedaço de navalha cai no chão.

Olho para aquela lâmina que venho ignorando há 10 anos. Ainda resisto.

Yuri Cidade

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