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Foto do escritorYuri Cidade

O último gole da noite

A noite descia sobre a pacata vila de Vlock, envolvendo-a em um manto de neblina. O taberneiro, com mãos habilidosas, organizava as últimas mesas e expulsava os últimos bêbados que teimavam em prolongar a noite. Foi nesse momento que a porta da taberna rangeu, interrompendo a rotina do estabelecimento, e uma figura enigmática adentrou o recinto.


- Já estamos fechando, amigo - disse com cortesia mesclada de cansaço.


O homem possuía olhos profundos, como abismos insondáveis, e trajava um manto escuro desgastado pelo tempo. Com voz suave e enigmática, ele pronunciou:


- Não me demorarei, pois desejo apenas um último gole antes que os primeiros raios de sol despertem.


O taberneiro, encolhendo os ombros, respondeu:


- Muito bem, que assim seja. Diga-me, qual é a bebida que agrada o seu paladar?


Com uma expressão enigmática nos lábios o estranho, declarou:


- Absinto da Noite Eterna.


O dono do local arqueou a sobrancelha, demonstrando surpresa diante do pedido.


- Como assim? Essa bebida é dos tempos dos meus tataravós. Infelizmente, não a possuo em meu estoque.


Com um sorriso nos lábios, o ilustre visitante perguntou:


- Tem certeza disso?


Apontando para a prateleira repleta de garrafas, o taberneiro respondeu com convicção:


- Meu depósito está aqui mesmo, nesta prateleira, como pode ver. Olho para cada uma dessas garrafas diariamente, e posso afirmar categoricamente que não possuo tal bebida. - No entanto, mal terminara de falar, seus olhos se arregalaram ao notar a presença inesperada do Absinto da Noite Eterna, destacando-se entre as demais garrafas.


Serviu um copo da misteriosa bebida para si mesmo e, em seguida, entregou outro ao enigmático visitante. O líquido âmbar desceu queimando suas gargantas, mas logo em seguida uma sensação indescritível de suavidade e clareza tomou conta de seus sentidos.


O forasteiro, em um tom hipnótico, começou a compartilhar sua jornada:


- Eu perambulo pelas noites, ansiando por desvendar os sonhos das pessoas. Exploro as camadas profundas da mente, livres dos filtros que o estado desperto nos impõe.


Em um tom reflexivo, respondeu:


- Há anos que não sonho - suas palavras ecoaram lentamente.


- Deixar de sonhar é assinar o atestado de óbito da própria imaginação. Sem sonhos, o futuro se torna uma sombra distante, quase inalcançável. - declarou o homem misterioso.


- Me falta tempo para sonhar.


- Ou será que você esqueceu como fazê-lo? - erguendo o copo, disse: - Um brinde: Aos sonhos que virão...


Familiarizado com a frase, o taberneiro completou com um leve sorriso:


- E aos pesadelos que ainda não encarei. - Surpreso, questionou: - Como conhece essa frase? Meu pai a repetia sempre que retornava para casa após suas aventuras.


O forasteiro apenas sorriu enigmaticamente, esvaziando o copo de absinto e partindo em direção à porta.


- Ei, amigo! Você esqueceu isso. - Disse o taberneiro apontando para uma ampulheta incomum, a qual possuía um formato esguio e elegante, adornado por um invólucro de vidro polido, permitindo que os olhos curiosos vislumbrassem o seu interior encantador. As areias que preenchiam a ampulheta pareciam desafiar a lógica temporal, fluindo de forma incomum, pois movia-se do fundo para o topo. Na metade inferior, uma fina camada de areia dourada se acumulava, enquanto na metade superior, outra camada de areia, de tonalidade mais clara e efêmera, parecia desafiar a gravidade, subindo lentamente. O movimento hipnótico das areias criava um espetáculo intrigante, transportando quem o observava para um reino de mistério e possibilidades infinitas.


Para sua surpresa, o visitante misterioso disse apenas uma palavra, enquanto devanecia na escuridão.


- Acorde!


Confuso, piscou os olhos e percebeu que os primeiros raios do sol invadiam seu quarto, pintando-o com uma suave luz matinal. Ofegante e coberto de suor, olhou ao redor, reconhecendo seu singelo aposento particular. Com dedos trêmulos, pegou os óculos da mesa de cabeceira ao lado da cama. Ao colocá-los, sua atenção foi atraída para o incógnito objeto que repousava na mesma superfície: A ampulheta dourada.

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