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Foto do escritorYuri Cidade

Manchete

Assim que saí da faculdade arrumei um bico no jornal. Era auxiliar de redação. Na real, era um estagiário com um nome mais bonito. Eu batia matérias corrigindo erros gramaticais e de concordância dos jornalistas mais experientes, os quais nunca estavam sóbrios o suficiente para escrever o que suas mentes criavam. Não reclamava. Aprendi muita coisa servindo de máquina de escrever. Era abril. A redação fervia. O calor ainda permanecia, mesmo o verão tendo acabado. Abria meus botões perto da gola para que me refrescasse um pouco e juntasse forças pra continuar batendo naquelas teclas. Escrevi tanto naquele dia que devo ter perdido uns dois quilos só com o que minha bunda suou na cadeira. Obviamente eu fiz hora extra com mais uns outros funcionários que chegavam sempre atrasados e tinham que compensar. Mas aquele dia finalmente tinha tomado seu rumo pro fim. – Ei, estagiário! Toma uma com a gente ali no bar do Jair? – gritou Paulo enquanto se arrumava pra sair. – Pô, muito obrigado, cara. Mas tô bem cansado. Acho que vou deixar pra tomar uma em casa mesmo. – Deixa de ser tão miserável, rapaz. Vem com a gente e nem te estressa. Não me deixaram outra opção. Quando percebi, eu estava abraçado nos outros rapazes totalmente bêbado. – Vocês são uns caras geniais, Paulo. – dizia eu enrolando a língua. – Sério. Eu quero aprender com vocês. – Você é um cara legal, estagiário. Mas a gente não é exemplo pra ninguém. Eu raramente estou sóbrio e disposto a fazer meu trabalho direito. Mas graças à uma força maior, ou acaso, ou a puta que me pariu, eu tenho o toque com as palavras. – É disso que tô falando, Paulo. Vocês simplesmente vomitam criatividade. – Você também, rapaz. Sempre releio as matérias que você corrige. Você sempre põe sua identidade de algum modo. – Porra! Muito obrigado. Mas não pude implantar minhas palavras ainda. Tenho que lutar por espaço. Sabe como é. – Eu vou te ajudar. Exerço um certo protagonismo com o nosso chefe: O Valter. Deixa comigo. A próxima coluna vou dar pra você fazer uma crítica de algum assunto em pauta. Como um teste. Mas não vá me decepcionar hein, rapaz? – disse-me acendendo um cigarro. – E fuma um cigarro também, porra. Se quer ser igual a mim, vai ter que ter mais vícios do que imagina. Enfiou o cigarro na minha boca, acendeu e continuamos a conversar durante grande parte da noite. Aquela madrugada foi um chute no saco. Estava tão bêbado que não lembro como cheguei em casa. Acordei atrasado e disparei pro jornal. Dei bom dia para todo mundo e ouvi murmúrios de ressaca no ar. Mas jamais isso viria de Valter. Ele era a integridade e a sobriedade daquele lugar. Apesar das diferenças, ele acreditava naquele bando de maluco. Por algum motivo ele parecia ter o controle de tudo. Peguei um café e quando voltei, Paulo estava sentado em minha mesa, fumando e com os pés sobre a máquina. – E aí, estagiário? Dormiu bem? – Caralho, Paulo! To fudido. O Valter já me olhou torto quando cheguei. Ele parece estar desapontado… – Vai se foder! O Valter não tem que questionar nossa sobriedade, entendeu? A gente que põe comida na mesa dela, sustentando esse jornal com nossa mente doentia e criativa. E ah! Tá aqui a matéria da coluna: Transporte Coletivo atual. Eu sei que não é grande coisa, mas você poderá criar, rapaz. Quando terminar, me chame e eu te levo até a sala do pitbull, certo? – Poxa. Obrigado, Paulo. Vou dar o meu melhor. – Blá, Blá, Blá. Deixe essas palavras pro Valter. Me paga uma cerveja depois que tá tudo certo. Ponho fé em você rapaz. Levantou e saiu assobiando pelo lugar. Paulo era um rebelde nato. Um boêmio consciente de si. Mas não havia tempo pra eu ficar analisando ele. TInha que escrever a coluna. Passei a manhã e boa parte da tarde escrevendo aquilo. 17 horas entreguei à Paulo. Ele leu silenciosamente. Analisou, olhou, cheirou, refletiu e disse: – Tenho dúvidas… – Em que? Eu posso corrigir se quiser… – Cala a boca, estagiário! Isso aqui ta perfeito. Minha dúvida é um medo de você me tirar o emprego. Sorri idiotamente orgulhoso do que fiz. Paulo me levou até a sala do Valter. – Bom dia, Valter. – Bom dia, rapazes. – Então, tenho um novo prodígio e quero começar a usar mais essa criatividade dele. O garoto tem identidade e acho que já pode fazer umas matérias menores e tal. O que sobra do pessoal. – Hmm – torceu o nariz – Tem algo dele pra me mostrar? – Obviamente. – Entregou-lhe o papel onde escrevi. Valter leu por alguns minutos. – O garoto tem talento, e vai aprender muito ainda. -me olhou – Eu autorizo sua ideia Paulo, mas você será o supervisor dele. Se ele foder a gente, quem se fode é tu, certo? – Uma foda a mais, outra a menos, tô sempre fodido, Valter. Deixa comigo. Viramos as costas e saímos. Nem bem Paulo fechou a porta da sala de Valter, já soltou: – Esse cara é um grande filho da puta sabia, rapaz? – Não sei de nada, Paulo. Não quero nem saber. Só quero minha oportunidade. – Vai por mim. Mas vamos lá. Mãos à obra. O tempo passou e comecei a me destacar dentro da redação. Conseguia matérias maiores, ganhei uma mesa melhor e a admiração dos meus superiores. Paulo continuava um boêmio e me fazia de seu pupilo. Valter faturava com o que eu escrevia e me elogiava para todos. Certo dia fui à sala dele mas dessa ele estava diferente. Parecia preocupado ou nervoso. Algo do tipo. – Me chamou, Seu Valter? – perguntei. – Chamei, rapaz. Senta aí. – Aconteceu algo? Alguma crítica? – Se acalma, porra! Engoli as palavras. – Como você sabe, tu está indo muito bem. Confio em você. De todos aqui, você é o que mais se mantém em condições de trabalho. Não que você seja completamente sóbrio, mas se matém num estado suportável. – Poxa, Seu Valter. Muito Obrigado. – Então, não ando me sentindo bem. E fui em uma benzedeira que ao colocar a mão em mim, desmaiou. Acordou depois de alguns minutos e disse que algo muito grande estava dentro de mim e iria me matar, rapaz. – agarrou minha mão desesperado – Não que eu seja muito crente dessas coisas, mas a reação dela foi tão intensa que resolvi me prevenir, já que ando sentindo coisas estranhas em mim. Eu vou fazer uma bateria de exames semana que vem na capital. Ficarei fora uns dias e colocarei Paulo como responsável, porém é um teste. Você vai ficar de olho nele e me bater o relatório. Se eu descobrir que ele fez merda e tu não me falou, vão os dois pro olho da rua, entendeu? – Perfeitamente, senhor. Mas o Paulo é meu amigo, me deu a oportunidade… – Não quero ouvir nenhum papo furado desse tipo. Você vigia ele e me conta. Caso contrário, vocês vão se foder. Assenti com a cabeça e saí. Caralho! Eu tinha que caguetar meu companheiro e padrinho de redação. Ia ser bem difícil. Eu estava numa sinuca de bico e não sabia jogar. Os dias foram passando, a redação sendo tocada pelo Paulo. Ou melhor, sendo tocada à deus dará, pois Paulo todo dia tinha um compromisso, uma matéria externa, algo do tipo que lhe fazia sair mais cedo, chegar atrasado, ter longas pausas pra café e motivos para se entupir de cocaína e fazer o jornal funcionar na madrugada. A coisa estava foda. E eu estava fodido. Valter retornou dias depois, me interrogou e eu disse que Paulo tocou a redação numa boa. Nem tão esforçado, nem tão vagabundo. Manteve o ritmo normal. Afinal, ele tocou normalmente da maneira dele. Que merda. Eu mentia pra mim mesmo. Com o passar da semana, Valter foi ficando paranoico. Tudo era motivo para achar que estavacom uma doença incurável que o mataria dolorsamente em cinco dias. – Se acalma, Seu Valter. – eu dizia – O senhor não tem nada. É forte como um touro. – Não, rapaz. Eu vou morrer. Meu deus. E minha mulher? Vai ficar arrasada. Eu a amo tanto, rapaz. – Você não vai morrer, Seu Valter. – Bom, vou lá no Dr. Fausto receber a notícia sobre meus exames… – Vai dar tudo certo. Eu estava cagado de medo. Voltei pra minha mesa e Paulo veio até ela. – Onde vai o maluco? – Vai saber o resultado dos exames. Está paranóico. Pobre coitado. – Ah! Vou aproveitar pra ir fazer aquela matéria externa rápida que te falei. Ele não vai querer conferir os métodos que usei. – Que matéria? – perguntei. – Sua memória é horrível, estagiário. Para com as drogas. – saiu em disparada. Eu podia ter ficado na minha. A passividade as vezes é uma dádiva. Mas exatamente naquele dia, resolvi seguir meu instinto e ir atrás de Paulo. Segui ele pelas ruas. Ele pegou um táxi. Peguei outro. Parou em frente à uma casa grande, linda, onde uma mulher madura, mas estonteatemente linda veio recebê-lo. Beijou seus lábios e entrou. Filho da puta! Ia foder no meio do expediente. Bom, já que era apenas isso, nada de extraordinário no cotidiano de Paulo, virei as costas e caminhei até o próximo ponto de táxi para retornar à redação. Porém, por via das dúvidas, anotei o endereço onde Paulo estava trepando. Cheguei na redação junto com Valter. Ele estava radiante. Pulando de felicidade. – Você tinha razão, rapaz! Eu vou viver. Sou forte como um touro. – Que bom, Seu Valter. Fico feliz pelo senhor. – Agora rapaz, você manda flores para este endereço – me entregou um papel – É minha casa. Quero que minha mulher tenha uma surpresa. Vou passar no barbeiro e ir pra lá. Apresse-se, rapaz. Saiu correndo e me deixou lá. Subi as escadas e telefonei para a floricultura. No momento que li o endereço para a florista, uma faca me entrou na alma. Era o mesmo endereço onde Paulo foi trepar. Desliguei o telefone e emudeci por uns instantes, olhando fixamente para os dois papéis com o mesmo endereço anotado. Tentei correr e pegar um táxi, mas o trânsito estava parado. Entrei em desespero. Fiquei tão nervoso que desisti. Sentei e esperei tudo acontecer. Paulo tinha que se foder também. Porra! Não que eu fosse correto, mas ele apelava na papagaida. Era uma bola fora atrás da outra. Mais ou menos uma hora depois chega Paulo, esbaforido, na redação. Acomoda-se em sua mesa, tremendo, acende um cigarro e engole o café. Me fiz de desentendido e fui até lá. – E ai, Paulo? Tenho aqui mais umas colunas… – Cala a boca. Não to bem agora. – Quer uma água? – Não. Me deixa. Deixei-o sozinho. Voltei pro meu canto e imaginei que havia dado tempo de Paulo correr. Bom, talvez tudo tinha dado certo. Os dois fodem, a mulher fode duas vezes, eu não me incomodo, ninguém se incomoda e todo mundo continua com sua vidinha medíocre de aparência. A verdade é que não deu nada certo. As flores que pedi nunca chegaram. A única entrega que esteve na casa de Valter foi a de três viaturas e uma ambulância. Saco preto e dois brutamontes carregando a carcaça dele. O chefe enfiou uma bala na própria boca e explodiu seu crânio, por puro desgosto ao encontrar sua esposa e Paulo fodendo em sua cama. Eu não sabia o que fazer. A mulher de Valter negou que estivesse em casa na hora da morte. Narrou uma história desesperada de que o marido havia entrado numa pranoia suicida. A polícia não fez questão de contestar a história da esposa de Valter. Suicídios são comuns nas altas rodas, principalmente quando se encontra um saquinho de cocaína no bolso do defunto. Porém, a solução do enclave estava toda na minha cabeça. Eu tinha o poder de exercer a “justiça” sobre o caso. Tremi. Chorei. Lamentei. Me calei. Quem acreditaria num estagiário? Assim, adentrou na redação o Sr. Hélio Casagrande, dono do jornal, e narrou a tragédia que havia acontecido. A redação ficou muda. Paulo suava. Foi ao banheiro de 15 em 15 minutos cheirar cocaína para se manter vivo. – Bom, senhores. Já disse o que tinha que dizer. Então, lhes pergunto: Alguém tem alguma pista ou sabia de algo que levasse Valter a fazer isso? Ele havia demonstrado algo? -perguntou Sr. Hélio. A sala emudeceu. Paulo nem conseguiu acreditar que o Sr. Hélio havia promovido-o, provisoriamente, ao cargo de Valter. Além de lhe dar a difícil missão de criar uma reportagem de capa para a tragégia. Ele veio até minha mesa e disse: – Estagiário, você faz a capa. Depois a gente conversa. – Mas… – Sem mas. Eu sou o chefe e lhe dou a ordem. – Tudo bem. Escrevi da maneira mais honrosa que consegui. Cada letra foi como uma bala atravessando o papel. A melhor que já fiz na vida. E era tudo uma mentira. Os dias passaram, Paulo assumiu de vez o jornal e eu virei seu sucessor. Toda noite sento na minha sala, acendo um cigarro, bebo, cheiro e faço de tudo para aceitar que todos somos seres corruptos e anestesiar o sentimento de que bala que estraçalhou a cabeça de Valter tinha sido disparada por mim.

Yuri Cidade

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