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Foto do escritorYuri Cidade

Crônica de ônibus

De todas as coisas que eu não gosto, trabalhar em algo “obrigado” é o primeiro lugar disparado. É simplesmente sentar na porra de uma cadeira a digitar caracteres alfanuméricos para sustentar a riqueza de um burguês safado, com meu suor. E digo: “Quem inventou o trabalho, não tinha nada pra fazer.” Pois bem, eu levantava às 6 da manhã, engolia um café qualquer, pegava duas conduções pra chegar e duas pra voltar. Carregava aquela pilha de processos atrasados, fazendo a via sacra entre escritório e fórum. Eu amo o direito, porém a aplicação dele me irrita. E sim, eu não me considerava, e ainda não considero, que seria feliz sentado atrás de uma mesa, obedecendo ordens de vestuário, comportamento e blá blá blá. O espírito livre me cai melhor. Era um dia quente de verão. Daqueles de fritar ovos no asfalto às 7 da manhã. Eu caminhava vagarosamente com minha mochila para pegar o ônibus. Segui assim, com um cigarro sendo o fiel escudeiro, posicionado estrategicamente entre meus dedos. Dei sorte, o bonde chegou rápido. Entrei. Típica cena de ônibus lotado. Mal tive tempo de pensar, apenas me enfiei num espaço mínimo no meio de todos. Foda. Parecia uma lata de sardinhas superlotada, ou simplesmente um presídio brasileiro. Suava 3 vezes mais. Gente descia, gente subia. Eu ainda iria trocar de condução pra chegar no trabalho. Assim, o inferno só me deu um resquício ilusório de alívio quando finalmente seguimos ao ponto de troca. Havia apenas eu e mais umas 5 pessoas, além do cobrador e do motorista. Tudo na maior tranquilidade. Esbocei até um pensamento otimista, mas eis que surge o maior imprevisto da história de um ato tão simples: uma nota de cem reais no chão de um ônibus. E eu, inocentemente (pra não dizer imbecilmente) junto a nota e grito: – De quem é esse 100 pila? O motorista freou bruscamente. O povo ficou ainda mais ensandecido. Pois todos, sem exceção, afirmavam serem os donos da nota. Uma senhora dizia que o dinheiro era pra comprar os remédios de suas 7 filhas. Outra afirmava ser de uma conta, uns tios apontavam para bolsas e carteiras afirmando terem deixado cair, até que o cobrador levantou-se, juntou a nota e disse: – É minha. Caiu do caixa. Ele mal terminou a frase e as pessoas avançaram sobre ele, desmentindo sua história. O motorista, sem saber do que se passava, veio até o fundo do ônibus reaver a nota que “teria voado” de seu bolso quando puxou sua carteira de cigarros. Pobre homem. As pessoas levantaram ainda mais o tom de suas vozes, acusando umas às outras de estarem mentido sobre o real proprietário do cem. Não bastasse isso, partiram para ataques pessoais, sem muitos fundamentos. Tampouco referia-se ao assunto em debate. Fulano era adúltero, uma senhora era traficante, um tal lá era homossexual e não se assumia, entre outras tantas acusações infundadas que surgiram na discussão. A cena era ridícula: um ônibus parado no meio da via central, trancando o trânsito, enquanto pessoas se agrediam por conta de malditos 100 contos. Porra, tudo bem que 100 reais é dinheiro, mas não a esse ponto. E a situação só piorava. Eu cheguei a cogitar ter enlouquecido, ou então estar participando de uma daquelas pegadinhas da tv aberta. Pra finalizar a situação toda, o motorista trancou as portas e disse: – NINGUÉM SAI DESSA MERDA ATÉ DEVOLVEREM MEU CEM. Isso provocou um pandemônio ainda maior. Porém, não sei por que diabos, eu tentei intervir e peguei a nota, dizendo: – Isso não é meu. Vamos nos acalmar, gente e descobrir de quem é a nota. Tudo bem, são cem reais, porém sabemos que só há um dono aqui dentro. Vamos descobrir. O pessoal enlouqueceu tentando me provar que era dono da maldita cédula. O trânsito foi ficando ainda mais caótico com o passar do tempo. Buzinas e gritos de “tira essa merda daí, seu corno” tomaram conta da rua. Lá dentro do batia-se a mesma tecla ainda: é meu. Passado uns 15 minutos, escuto uma sirene. Pensei: “Graças a Deus! A polícia.” Vieram 3 policiais, apontando suas armas e gritando: – Tá tudo bem, meu amigo. Vamos conversar. Quanto cê quer pra liberar os reféns? – falava um deles em tom tranquilizante. – Não é sequestro. Pode baixar as armas. – gritei pela janela. – Ué, então porque esse trambolho tá atravessado na avenida? Tem gente querendo trabalhar! – E eu também, seu guarda. Pode acreditar. O problema é por conta de cem reais. – An? Tu tá me tirando, bicho? – Juro que queria, mas não. Surgiu uma nota de cem pau no chão do busão e todo mundo quer pra si, afirmando ser o real proprietário desta. – Não é possível. – se dirigiu à porta da frente do busao e soltou – Aê, motora! Ou tu abre essa merda ou eu juro que vou entrar aí a força e tu não vai gostar. O silêncio reinou. Afinal, ele era a lei e tinha uma arma. Ninguém tava afim de tomar pipoco por míseros cem reais. Engraçado como o valor das coisas mudam conforme a situação. O policial entrou, caminhou até mim, pegou a nota e disse: – Gente, só tem um dono dessa merda. Quem é? Erro mirim. O furdunço começou todo de novo. Gritaria, empurrões, acusações e tudo já narrado até aqui. O policial chamou o reforço e disse: – Vocês vão explicar toda essa merda na delegacia. – Ufa. Tô salvo. Preciso ir trabalhar. Obrigado, seu guarda. – respondi aliviado. – Ufa o caralho, bichão. Tu vai também. – Mas pô, eu já disse que a nota não é minha. Eu não quero ela. Não me interessa. – Não quero saber! Tá no ônibus, vai pra delegacia. A cena era ridícula: um ônibus com 5 ou 6 gatos pingados, brigando por cem reais, escoltados por duas viaturas rumo à delegacia. Chegando lá, a confusão não deu trégua. Até rodada de mão na cara teve. O povo já tava cagando pro que ia acontecer. Acho que talvez acreditavam na própria mentir. Ou tinham motivos pra isso também. Não sei. Deixem eles. Assim como eu queria que me deixassem ir trabalhar. O delegado chamou um por um na sala dele e interrogou. Todos afirmavam serem donos, por “n” motivos infundados e de certa forma até fantasiosos demais pras 7 da manhã. Quando chega minha vez, entro e me sento de frente pró delegado. Um cara forte, de uns 45 anos, fumando um cigarro. – Então, de quem é a nota? – Não faço a menor ideia. – Como ela foi parar lá? – Menos ainda. – Que porra tu tava fazendo lá então? – Pegando o ônibus normalmente pra trabalhar. – Sei. Pode sair. Vou dar meu parecer na frente de todo mundo. Fomos para outra sala, onde o delegado reuniu a gente: – Tantos donos e só um que não sabe de nada. E se eu te disse que a perícia conferiu a nota e disse que era falsa? Foi um alvoroço pior ainda, por que todos admitiam que estavam mentido. A verdade voltou-lhes a calhar. E eu continuei com minha versão de: Eu não sei de nada. Então o delegado falou: – Seguinte, eu não quero me estressar com vocês. Então vocês tem duas opções: ou vocês saem todos agora daqui e a gente esquece essa merda, ou vai todo mundo ser processado junto por emitir notal falsa. O que vocês querem? Saíram todos correndo, esmurrando-se para ir embora. Eu apenas sai pé atrás de pé, calmamente. Enfim, tinha chegado o final da minha via Crucis. É, eu só queria pegar o táxi normalmente e tentar não chegar atrasado. – Quanto tu faz até o centro? – 20 pila. – Beleza. Tem tem troco pra… Merda. Eu esqueci da nota de cem que tinha que trocar. Se aquela porcaria era falsa ou não, o fato foi que meu dia resumiu-se em uma bizarra esmola do acaso. Eu realmente paguei pra não me incomodar. Um dia de salário descontado, fora os cem. Ainda bem, tirei um dia de folga. Até de mim.

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