Vigésimo sexto dia. Me encontro com 76 anos. Tento me lembrar dos muitos momentos que já se passaram, mas é como se minha memória fosse apenas um borrão branco. Lembro-me apenas daquele fatídico dia em que saí para encher a cara com os rapazes. Eu estava no auge da juventude. Aquela noite foi memorável. Risadas, alegria, gozo, mulheres e o doce amargo do uísque. O gosto do fumo a boca se confundido com a saliva áspera das damas sentadas à minha mesa. Saí daquele bordel com duas meretrizes e as levei para meu pequeno apartamento. Estava tão bêbado que elas tiveram que se esforçar além da conta para que meu negócio funcionasse. Mas também, depois que funcionou, elas tiveram mais trabalho ainda para desligá-lo.
Deixei as duas na cama, fui até a cozinha e matei o resto de vinho que havia na geladeira. Caminhei até a sacada, acendi um cigarro e vi o relógio da cidade bater 4:30 da manhã. Pensei comigo:
– O tempo é meu escravo. – se eu soubesse o que essas palavras significavam, nunca haveria as proferido.
Vi quase o dia amanhecer pela sacada. Voltei pro quarto e arrumei um lugar confortável em meio a dois pares de peitos mais lindos que havia visto. E pensei novamente:
– Isso é algo de que vale a pena lembrar.
Dormi. Sonhei como se estivesse entorpecido de alguma droga sintética. Relógios caindo, bocas cuspindo gente, mulheres grávidas dando luz à homens já feitos. Me deparei com milhares de corpos sem rostos, porém tinha a impressão de que os conhecia de algum lugar ou lapso temporal. Todos os corpos ostentavam uma frase tatuada: O tempo é meu escravo.
Acordei em disparate. Coração a mil por hora. Respiração ofegante e o suor frio. Levantei e fui beber água, mas me senti um pouco fraco e com uma tosse rouca. Imaginei que tinha gripado por conta da putaria da noite passada. Minhas coisas estavam diferentes, o local parecia estar sujo, empoeirado, como se tivesse parado no tempo. Bebi água da torneira. Ela tinha gosto de passado. Chequei as horas no relógio de pulso e faltavam uns 20 minutos para eu ir trabalhar. Corri até o banheiro para escovar os dentes, porém, quando me olhei no espelho, vi meu rosto uns 10 anos mais velho. As rugas tinham tomado conto das minhas superfícies, olheiras, boca seca, e os olhos ostentando um cansaço de uma vida inteira.
Entrei em choque. Me desesperei e achei que estava sonhando. A agonia do sonho tinha aflorado ainda mais. Chequei datas, e realmente haviam se passado dez anos. Entrei em pânico, mas não havia me convencido de que era verdade. Ainda estava tonto e me recusando a aceitar de que era realidade. Acreditei ser um pesadelo, no qual eu tinha que dormir para acordar na realidade certa. Me entupi de calmantes e apaguei.
Abri os olhos e me senti vivo. Pensei que tudo havia sido apenas delírio das porcarias que eu usei. Decidi até que iria largar as drogas e aproveitar minha juventude. Mas ao levantar, senti as juntas dos joelhos doerem e a boca seca. Corri pro espelho e vi que estava mais velho do que antes. Eu já aparentava uns 50 anos.
Enlouqueci. Corria dentro da casa. Abria portas e gavetas atrás de pistas do que eu andava vivendo, mas não havia uma lembrança sequer. Nada. Nem um arquivo do meu passado. Eu estava envelhecendo a cada vez que me rendia ao sono.
Decidi que não iria dormir. Passei o máximo de dias que consegui na base de cocaína, energéticos e pílulas de guaraná. Estava tão ligado que começava a delirar. Via sombras por todos os lados, corpos, vozes. Meu corpo pedia por descanso, mas meu cérebro implorava para que eu não envelhecesse mais. De qualquer maneira eu iria morrer em pouco tempo.
Ingeri mais um bando de drogas pra não dormir. Escrevi tudo que lembrava em um papel e até mesmo o que vinha acontecendo, desde o ponto o qual eu parei de lembrar. A memória não era mais opção, pois não havia o que guardar, simplesmente porque eu não vivia. Eu estava exausto e com medo do próximo sono. Mas não pude evitar, desabei na poltrona com o cigarro aceso e tudo.
Não houve sonho, pesadelo ou qualquer outro delírio. Foi negro como um abismo. Pesado e profundo. Quando acordei, o calendário já datava o dia de hoje, e me pus a escrever este relato ao lado de um álbum de fotografias em branco.
Yuri Cidade
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