Se a vida não fosse tão teatral quanto parece, eu seria apenas mais um reles escravo do mundo. Há quem diga que o que conto é apenas bobagens do meu imaginário. Não estou aqui pra provar o contrário, mas posso lhes afirmar que jamais vi tamanho extraordinário.
Era fevereiro. Uma tarde quente pra cacete. Os turistas lotavam a praia com a sua farofada de final de semana. Meu mês tinha sido osso. Havia me sobrado apenas alguns trocados para sustentar os vícios e menos ainda pra pagar as contas. O tempo cobra caro para te comer, ainda mais se você não está comendo ninguém. O aluguel do ócio é o preço do tédio e da inutilidade. Aproveitei a falta de sorte pra caminhar na praia a procura de um bar. Andei por alguns minutos e dei por encontrar um botequinho simpático perto da orla. Sentei-me numa mesa perto do balcão e pedi o de sempre: Uísque duplo e uma garrafa da cerveja mais gelada do bar. Bebi o uísque com apenas um trago, e enchi meu copo de cerveja, logo dando um gole pra aliviar a queimação do burbom barato que havia ingerido.
Passadas mais ou menos uma hora e meia, eu já estava bem alto. Levantei para mijar e comprar mais cigarros. Na ida ao banheiro, esbarrei em um camarada.
– Ei, desculpa! – o cara nem olhou pra trás – Amigo, você deixou cair algo. – Ele já tinha sumido feito fumaça.
Juntei a carta do chão. Era uma espécie de baralho. Uma carta de Tarô.
– Mas que diabos é isso? – comecei a examiná-la – “O Louco” – era o nome do personagem que estava ilustrado na carta.
Ao virar a carta, vi no seu verso alguma inscrição que dizia: “Louco que tanto escreve, poetize-se até este endereço e comece a escrever seu futuro”. Suei frio. Algo naquela caligrafia me fazia crer que tal recado era pra mim. Guardei-a no bolso e fui mijar. Quando saí do banheiro minha cabeçou rodopiou e senti um doce perfume feminino, mas não havia uma mulher sequer naquele salão. Achei que já estava bêbado demais pra continuar ali e resolvi ir pra casa. A caminhada até em casa foi sinistramente confusa. Errei três vezes a rua, deixei cair meu cigarro que parecia estar colorido, fui atacado por um cachorro, mas finalmente consegui abrir a porta da frente e capotar no sofá mesmo.
Dormi durante umas 12 horas seguidas, sonhando estar em um tabuleiro de xadrez, correndo de cavalos que queriam me pisotear, rainhas que queriam me capar, reis a me julgar e bispos a me catequizar. Acordei suado e fedendo a boteco. Confuso ainda, caminhei pela casa juntando os cacos de uma noite ébria em uma manhã com excesso de sobriedade. Lembrei da carta. Procurei-a na camisa mas não a encontrei. Pensei tê-la perdido. Tomei banho e fui até o quarto para colocar uma roupa e, surpreendentemente, a carta esta sobre a cama. Meu cérebro disparou com o susto. Peguei-a de cima da cama e lá estava a figura do louco a me encarar com seu bastão e sua trouxa na ponta. Virei novamente a carta e a mensagem havia mudado: “Ainda lhe espero.” O endereço ainda continuava o mesmo. Curioso demais, resolvi me vestir e ir atrás desse mistério.
Peguei um táxi e dei o endereço pro motorista. O lugar era longe pra caralho de onde morava. Várias quebradas e vielas. Era tão complicado que o taxista me largou em uma esquina do bairro porque o carro não entrava nas ruas a seguir. Comecei a caminhar e perguntar pras pessoas onde era o tal endereço. Com muito custo achei uma casinha de madeira singela. Ao me aproximar do portão, o mesmo perfume que havia sentido no bar inundou minhas narinas, fazendo minha cabeça rodar novamente. Fui até a porta bati e chamei:
– Alguém em casa?
– Pode entrar. – uma voz feminina vinha dançando pelo ar
Entrei pé por pé, como se quisesse que a sola dos meus sapatos sussurrassem. O como era escuro, não enxergava muito bem. Até que cheguei a um quarto com uma meia luz violeta iluminando uma boca linda. O contorno dos lábios parecia ter sido desenhado, os dentes eram branquíssimos que refletiam no sorriso, a luz do cômodo após cada tragada em seu cigarro.
– Sente-se, meu bem! Estava à sua espera, Louco. – Disse ela levantando da posição horizontal e pegando na minha mão.
Ela era a coisa mais linda que já havia visto. Uma mulata alta, com curvas acentuadas, olhos negros como uma noite sem estrelas, seios redondos e um perfume hipnotizante. Era o ser mais sexy e enigmático que já vi. Com calma, me puxou pra cama, deitou-se em cima de mim e beijou-me com ardor. Era como se tivesse ingerido uma droga sintética, pois vi as figuras e as sensações se dissolverem ao irmos arrancando as roupas. Ela montou em mim e foi como se eu conhecesse o céu. Trepamos psicodelicamente por uma hora e meia. Até que caímos na exaustão total.
– E aí, garanhão? Cê tem sorte? – perguntou-me enquanto pegava dois cigarros para nós
– Olha, depois de hoje eu me considero o cara mais sortudo do mundo. – respondi acendendo meu Camel vermelho.
– Então, queridinho, eu vou lhe dar o azar de ter sorte. – puxou um baralho de tarô – Esse é meu baralho. Meu universo. No qual, você está aqui. – pegou a carta que deixei cair no chão durante a transa e encaixou no meio da fileira – Você tem uma grande relevância, pois o louco é o começo e o fim de um baralho. O número vinte dois e o zero ao mesmo tempo, ou seja, você é quem dita a história. E eu sei como você bom de histórias, poeta.
– Mas que maluquice é essa, gata? Sou cético demais pra isso. E além do mais, como faço parte do seu mundo, se nem sei seu nome. – perguntei confuso
– Como se tudo fosse uma questão de acreditar ou não acreditar. Você não gostaria de um roteiro diferente? De ter um propósito? – disse passando a mão pelo meu peito e mordendo minha orelha – Aliás, meu nome é Mirtes. Madame Mirtes, para os clientes. – sussurrou em meu ouvido.
– Eu não sei… Isso parece uma bizarrice sem tamanho. Mas eu topo. O que tenho que fazer, Mirtes?
– Seguinte – pegou o baralho e enfileirou as cartas deixando pontos vazios – Seu universo se completa com o meu. E há três cartas chaves para resolução do nosso enlace. Mas só cabe a você resolve-lo. Meu dom não chega perto do seu. O auto conhecimento é a chave para que conectemos nossos mundos para o próximo passo. Revolucionaremos o mundo. Porém, os obsessores não podem nos encontrar, senão tudo irá por água abaixo.
– Isso tá ficando cada vez mais bizarro. Mas diga: qual o primeiro passo?
– Não sei. Minha visão trava no seu futuro. Apenas me disseram que você o escolhido, o qual me libertará da minha prisão e também da sua.
– Puta que pariu! Que maluquice.
– Acredite. Agora vá, meu amor. Nosso sentido depende da sua confusão.
Levantou rebolando aqueles quadris maravilhosos. Aproveitei a deixa e me fui. No caminho, fui mirabolando o que ela queria dizer com tudo aquilo e como eu encontraria as peças faltantes do quebra-cabeças. Pensei estar enlouquecendo, mas aquela cigana era convincente demais.
Passaram alguns dias e a saudade por Mirtes aumentou. Ela tinha algo que mexia comigo. Porém eu precisava escrever algo para poder comer aquele mês. O problema é que o jornal havia me demitido por excesso de ressaca. Rodei a cidade inteira atrás de emprego, mas não achava nada. Foi onde encontrei um senhorzinho que me observava escrevendo na praça.
– Você é escritor? – perguntou-me
– Acho que já fui. Hoje tá foda ser. – respondi irritado
– Você tem um romance?
– Tenho… Só ninguém quis publicá-lo ainda. Acho que nem irão
– Dê-me pra ler. Acho que posso ajudá-lo.
Tirei da pasta os originais e entreguei ao velho. O mesmo, leu a sinopse e se encantou. Disse que iria revisá-lo e publicaria ainda essa semana. Não acreditei muito, mas caguei pro velho. Afinal, eu só pensava em como achar as malditas peças do quebra-cabeças de Mirtes.
Passou uma semana e recebo em minha caixa dos correios um exemplar do meu livro publicado. Nele havia um bilhete: “Caro Poeta: seu ciclo se inicia. Parabéns. Mas nem tudo são flores” Abri o livro e caiu um cartão de um banco com senha e uma carta de Tarô. A carta se chamava Roda da Fortuna, no seu verso havia escrito “Roda que gira, corda que vibra, rede que apara. Te prepara, pois a ascensão precede a queda. Mas o abismo sorri e te coloca novamente no chão.”
Intrigado, liguei pra Mirtes mas ela não atendia. A ligação nem ao menos se completava. Fui à sua casa mas ela não estava. Irritado, fui ao maldito banco checar aquela conta. Pra minha surpresa, eu estava milionário. Meu livro vendia como se fosse cerveja num boteco.
Durante aqueles seis meses eu bebi, trepei, fumei e cheirei tudo que podia. Mas Mirtes havia sumido e isso fazia me sentir vazio. As noites começaram a cobrar seu preço. Insônia e náuseas. Dores de cabeça fortíssimas me impediam de escrever o próximo volume do livro. Minha conta bancária foi diminuindo bruscamente. Desesperado, procurei Mirtes, mas não a encontrava em nenhum lugar. Perguntei pela cidade inteira, mas nada. Sentei-me na praça novamente e chorei. Chorei por ter perdido o rumo de tudo.
– E aí, meu amigo? Por que choras? – aquele maldito velho apareceu de novo.
– Que cê quer dessa vez? – perguntei irritado
– Ué, achei que você havia recuperado a sorte. Mirtes é uma bruxa, rapaz. Esqueça-a!
– Como assim? Você conhece ela? Por favor, me diga o paradeiro dela? – me ajoelhei
– Nem sob tortura. Você me deve agora. E ela não poderá ajudá-lo. – virou às costas e partiu atirando uma carta pra mim.
A carta era o Diabo. No verso da mesma, mais um enigma: “Ferve alma, perde a calma e lava o rosto. Teu encosto chega no desaforo que aperta teu pescoço. Mas nem tudo é desgosto para quem cria seu próprio universo. Seja esperto e me encontre mais perto do que imaginas. Ass: Mirtês”
Minha cabeça girou. Mirtes estava por aqui. Em algum lugar ela devia estar a me observar. Fui de beco em beco, viela em viela, até em puteiros eu estive. Rodei durante uma semana na rua sem dormir atrás da mesma. Enquanto que meu celular só tocava para ouvir a voz do velho me dizendo que eu jamais iria me livrar dele. Cansado de tudo, fui pra casa me entupir de cocaína com o resto de dinheiro que sobrara.
Ao abrir a porta, vejo aquela inconfundível silhueta: Mirtes. Corri para seus braços, abracei-a, beijei-a, e chorei em seus seios.
– Eles nos descobriram, meu amor. Mas ainda há salvação. Temos que fugir. E procurar nosso quebra-cabeças todo novamente do começo. – atirou todas as cartas pela minha janela, as quais voaram e se perderam no vento. Uma para cada lado.
– Faço tudo por você, Mirtes. Vou arrumar minhas coisas e você vai e arruma as suas. Passo pra te pegar daqui meia hora.
– Tudo bem, vou até em casa pegar tudo. – e saiu correndo.
Peguei tudo que eu achava que precisava. Meus escritos principalmente. Retirei meu carro na oficina com o resto de dinheiro que me sobrou, e me mandei atrás de Mirtes.
Chegando na sua rua, ouvi o grito dela e logo após uma explosão. Corri o máximo que pude, mas já era tarde. A casa de Mirtes ardia em chamas. Pude ver ela passar em incendiada na janela sem derramar uma lágrima. Mirtes era a mulher mais forte que já conheci. A casa caiu pedaço por pedaço. Chorando, eu sentei na calçada. Como uma cinza que caía do céu, uma carta caiu em meu colo: A morte, onde estava rabiscado a seguinte frase: “A morte não é o fim. É a renovação.”
A polícia chegou, os bombeiros apagaram o fogo, mas ninguém acreditou na minha versão maluca da história sobre Tarô, Mirtes e o Diabo. Fui detido e julgado. Minha sentença foi ser internado em um sanatório até estar apto novamente para habitar a sociedade. Foram os 3 anos mais longos da minha vida, e Mirtes ainda me visitava nos sonhos diariamente. Quando finalmente os médicos acharam que eu estava apto, eu fui solto. Não tinha mais casa. Apenas tinha meus escritos, os quais eu produzi durante 3 anos de manicômio. Aluguei um apê com o dinheiro da venda do carro e escrevi o maior romance que eu pude: “A cigana”. Ganhei até condecorações no jornal. Após uma noite de autógrafos numa livraria local, peguei os livros que haviam sobrado e de um deles caiu uma carta exalando o velho perfume de Mirtes. Era o Louco com inscrições que diziam: “O louco é são novamente. Recomece nosso universo.”
Yuri CidadeSe a vida não fosse tão teatral quanto parece, eu seria apenas mais um reles escravo do mundo. Há quem diga que o que conto são apenas bobagens do meu imaginário. Não estou aqui pra provar o contrário, mas posso lhes afirmar que jamais vi tamanho extraordinário.
Era fevereiro. Uma tarde quente pra cacete. Os turistas lotavam a praia com a sua farofada de final de semana. Meu mês tinha sido osso. Havia me sobrado apenas alguns trocados para sustentar os vícios e menos ainda pra pagar as contas. O tempo cobra caro para te comer, ainda mais se você não está comendo ninguém. O aluguel do ócio é o preço do tédio e da inutilidade. Aproveitei a falta de sorte pra caminhar na praia a procura de um bar. Andei por alguns minutos e dei por encontrar um boteco simpático perto da orla. Sentei-me numa mesa perto do balcão e pedi o de sempre: Uísque duplo e uma garrafa da cerveja mais gelada do bar. Bebi o uísque com apenas um trago e enchi meu copo de cerveja, dando um gole pra aliviar a queimação do burbom barato que havia ingerido.
Passadas mais ou menos uma hora e meia, já estava bem alto. Levantei para mijar e comprar mais cigarros. Na ida ao banheiro, esbarrei em um camarada.
– Ei, desculpa! – o cara nem olhou pra trás – Amigo, você deixou cair algo. – Ele já tinha sumido feito fumaça.
Juntei a carta do chão. Era uma espécie de baralho. Uma carta de Tarô.
– Mas que diabos é isso? – comecei a examiná-la – “O Louco” – era o nome do personagem que estava ilustrado na carta.
Ao virar a carta, vi no verso alguma inscrição que dizia: “Louco que tanto escreve, poetize-se até este endereço e comece a escrever o futuro”. Suei frio. Algo naquela caligrafia me fazia crer que tal recado era pra mim. Guardei-a no bolso e fui mijar. Quando saí do banheiro minha cabeça rodopiou e senti um doce perfume feminino, no entanto não havia uma mulher sequer naquele salão. Achei que já estava bêbado demais pra continuar ali e resolvi ir pra casa. A caminhada até em casa foi sinistramente confusa. Errei três vezes a rua, deixei cair meu cigarro, o qual parecia estar colorido, fui atacado por um cachorro, escutava uma melodia cigana ao fundo, e com muito custo consegui abrir a porta da frente e capotar no sofá mesmo.
Dormi durante umas 12 horas seguidas, sonhando estar em um tabuleiro de xadrez, fugindo de cavalos que queriam me pisotear, rainhas que queriam me capar, reis a me julgar e bispos a me catequizar. Acordei suado e fedendo a boteco. Ainda confuso, caminhei pela casa juntando os cacos de uma noite ébria em uma manhã com excesso de sobriedade. Lembrei da carta. Procurei-a na camisa mas não a encontrei. Pensei tê-la perdido. Tomei banho e fui até o quarto para colocar uma roupa e, surpreendentemente, a carta estava sobre a cama. Meu cérebro disparou com o susto. Peguei-a de cima da cama e lá estava a figura do louco a me encarar com seu bastão e sua trouxa na ponta. Virei novamente a carta e a mensagem havia mudado: “Ainda lhe espero.” O endereço ainda continuava o mesmo. Curioso demais, resolvi me vestir e ir atrás desse mistério.
Peguei um táxi e dei o endereço pro motorista. O lugar era longe pra caralho. Várias quebradas e vielas. Era tão complicado que o taxista me largou em uma esquina do bairro porque o carro não entrava nas ruas a seguir. Comecei a caminhar e perguntar às pessoas onde era o tal endereço. Com muito esforço achei uma casinha de madeira singela. Ao me aproximar do portão, o mesmo perfume que havia sentido no bar inundou as narinas, fazendo a cabeça rodar novamente. Fui até a porta bati e chamei:
– Alguém em casa?
– Pode entrar. – uma voz feminina vinha dançando pelo ar
Entrei pé por pé, como se quisesse que a sola dos meus sapatos sussurrassem. O cômodo era escuro, não enxergava muito bem. Até que cheguei no quarto, o qual uma meia luz violeta iluminava os traços de uma boca linda. O contorno dos lábios parecia ter sido desenhado, os dentes eram branquíssimos que refletiam no sorriso.
– Sente-se, meu bem! Estava a sua espera, Louco. – Disse se levantando da posição horizontal e pegando em minha mão.
Ela era a coisa mais linda que já havia visto. Uma mulata alta, com curvas acentuadas, olhos negros como uma noite sem estrelas, seios redondos e um perfume hipnotizante. Era o ser mais sexy e enigmático que já vi. Com calma, me puxou pra cama, deitou-se em cima de mim e beijou-me com ardor. Era como se tivesse ingerido uma droga sintética, pois vi as figuras e as sensações se dissolverem ao irmos arrancando as roupas. Ela montou em mim e foi como conhecer o céu. Trepamos em meio àquela psicodelia até cairmos em exaustão total.
– E aí, garanhão? Cê tem sorte? – perguntou-me enquanto pegava dois cigarros para nós
– Olha, depois de hoje me considero o cara mais sortudo do mundo. – respondi acendendo o cigarro.
– Então, queridinho, vou lhe dar o azar de ter sorte. – puxou um baralho de tarô – Esse é meu baralho. Meu universo. No qual você está aqui. – pegou a carta que deixei cair no chão durante a transa e encaixou no meio da fileira – Você tem uma grande relevância, pois o louco é o começo e o fim de um baralho. O número vinte dois e o zero ao mesmo tempo, ou seja, você é quem dita a história. E bem sei como você é bom de histórias, poeta.
– Mas que maluquice é essa, gata? Sou cético demais pra isso. E além do mais, como faço parte do seu mundo, se nem sei seu nome. – perguntei confuso
– Como se tudo fosse uma questão de acreditar ou não acreditar. Você não gostaria de um roteiro diferente? De ter um propósito? – disse passando a mão pelo meu peito e mordendo minha orelha – Aliás, meu nome é Mirtes. Madame Mirtes, para os clientes. – sussurrou em ao ouvido.
– Eu não sei… Isso parece uma bizarrice sem tamanho. Mas eu topo. O que tenho que fazer, Mirtes?
– Seguinte – pegou o baralho e enfileirou as cartas deixando pontos vazios – Seu universo se completa com o meu. E há três cartas chaves para resolução de nosso enlace, e cabe a você resolve-lo. Meu dom não chega perto do seu. O autoconhecimento é a chave para conectar nossos mundos para o próximo passo. Revolucionaremos o mundo. Porém, os obsessores não podem nos encontrar, senão tudo irá por água abaixo.
– Isso tá ficando cada vez mais bizarro. Mas diga: qual o primeiro passo?
– Não sei. Minha visão trava no seu futuro. Apenas me disseram que você o escolhido, o qual me libertará da minha prisão e da sua.
– Puta que pariu! Que maluquice.
– Acredite! Agora vá, meu amor. Nosso sentido depende da sua confusão.
Levantou rebolando aqueles quadris maravilhosos. Aproveitei a deixa e me fui. No caminho, não parei de pensar um segundo no que ela queria dizer com tudo aquilo e em como encontraria as peças faltantes do quebra-cabeças. Pensei estar enlouquecendo, mas aquela cigana era convincente demais.
Passaram alguns dias e a saudade por Mirtes aumentou. Ela tinha algo que mexia comigo. Porém eu precisava escrever algo para poder comer aquele mês. O problema é que o jornal havia me demitido por excesso de ressaca. Rodei a cidade inteira atrás de emprego, mas não achava nada. Foi onde encontrei um senhorzinho que me observava escrevendo na praça.
– Você é escritor? – perguntou-me
– Acho que já fui. Hoje tá foda ser. – respondi irritado
– Você tem um romance?
– Tenho… Só ninguém quis publicá-lo ainda. Acho que nem irão...
– Dê-me pra ler. Acho que posso ajudá-lo.
Tirei da pasta os originais e entreguei ao velho. Ele leu a sinopse e se encantou. Disse que iria revisá-lo e publicaria ainda essa semana. Não acreditei muito e caguei pro velho. Afinal, só pensava em como achar as malditas peças do quebra-cabeças de Mirtes.
Passou uma semana e recebo em minha caixa de correio um exemplar do livro publicado. Nele havia um bilhete: “Caro Poeta: seu ciclo se inicia. Parabéns. Mas nem tudo são flores” Abri o livro e caiu um cartão de um banco com uma senha e uma carta de Tarô. A carta se chamava Roda da Fortuna e no seu verso havia escrito “Roda que gira, corda que vibra, rede que apara. Te prepara, pois a ascensão precede a queda. O abismo lhe sorri e coloca tudo novamente ao chão.”
Fique de veras intrigado, então resolvi ligar para Mirtes, e a ligação nem ao menos completava. Fui à sua casa mas ela não estava. Irritado, fui ao maldito banco checar aquela conta. Para minha surpresa, estava milionário. O livro vendia como se fosse cerveja num boteco.
Durante aqueles seis meses bebi, trepei, fumei e cheirei tudo que podia. Mas Mirtes havia sumido e isso provocava um vazio imenso em minha alma. As noites logo combraram seu preço. Insônia e náuseas. Dores de cabeça fortíssimas me impediam de escrever o próximo volume do livro. Minha conta bancária foi diminuindo bruscamente. Desesperado, procurei Mirtes, mas não a encontrava em nenhum lugar. Perguntei pela cidade inteira, e nada. Sentei-me na praça e chorei por ter perdido o rumo de tudo.
– E aí, meu amigo? Por que choras? – Aquele maldito velho apareceu.
– Que cê quer dessa vez? – Perguntei irritado
– Ué! Achei que você havia recuperado a sorte. Mirtes é uma bruxa, rapaz. Esqueça-a!
– Como assim? Você conhece ela? Por favor me diga o paradeiro dela? – Me ajoelhei e implorei.
– Nem sob tortura. Você me deve agora. E ela não poderá ajudá-lo. – virou às costas e partiu atirando uma carta pra mim.
A carta trazia a figura do diabo e em seu verso, mais um enigma: “Ferve alma, perde a calma e lava o rosto. Teu encosto chega no desaforo que aperta teu pescoço. Mas nem tudo é desgosto para quem cria seu próprio universo. Seja esperto e me encontre mais perto do que imaginas. Ass: Mirtês”
Minha cabeça girou. Mirtes estava por aqui. Em algum lugar ela devia estar a me observar. Fui de beco em beco, viela em viela, até mesmos em puteiros estive. Rodei durante uma semana na rua sem dormir. Meu celular só tocava para ouvir a voz do velho me dizendo que eu jamais iria me livrar dele. Cansado de tudo, fui pra casa me entupir de cocaína com o resto de dinheiro que sobrara.
Ao abrir a porta, vi aquela inconfundível silhueta: Mirtes. Corri para seus braços, abracei-a, beijei-a e chorei em seus seios.
– Eles nos descobriram, meu amor. Mas ainda há salvação. Temos que fugir. E procurar nosso quebra-cabeças todo novamente do começo. – Dizia ela enquanto atirava todas as cartas pela janela, por onde voaram e se perderam no vento.
– Faço tudo por você, Mirtes. Vou arrumar minhas coisas, enquanto você vai até sua casa e arruma as suas. Passo pra te pegar daqui meia hora.
– Tudo bem! Vou pra casa pegar tudo. – E saiu correndo.
Peguei o que achava que precisava. Meus escritos principalmente. Retirei o carro da oficina com o resto de dinheiro que me sobrou e parti ao encontro Mirtes.
Chegando na sua rua, ouvi o grito dela e logo após uma explosão. Corri o máximo que pude, mas já era tarde. A casa de Mirtes ardia em chamas. Pude ver aquela mesma silhueta, dessa vez incendiada passando pela janela. Mirtes era a mulher mais forte que já conheci. A casa caiu pedaço por pedaço. Aos soluços, sentei na calçada. Como as cinzas que caiam do céu, uma carta pousou em meu colo: A morte, onde estava rabiscado a seguinte frase: “A morte não é o fim. É a renovação.”
A polícia chegou, os bombeiros apagaram o fogo, mas ninguém acreditou na minha versão maluca da história sobre Tarô, Mirtes e o Diabo. Fui detido e julgado. Minha sentença foi ser internado em um sanatório até estar apto novamente para habitar a sociedade. Foram os 3 anos mais longos da minha vida, e Mirtes ainda me visitava nos sonhos diariamente. Quando finalmente os médicos acharam que estava apto, fui solto. Não tinha mais casa. Apenas meus escritos que produzi durante 3 anos de manicômio. Aluguei um apê com o dinheiro da venda do carro e escrevi o maior romance que eu pude: “A cigana”. Ganhei até condecorações no jornal. Após uma noite de autógrafos numa livraria local, peguei os livros que haviam sobrado e de um deles caiu uma carta exalando o velho perfume de Mirtes. Era o Louco com inscrições que diziam: “O louco é são novamente. Recomece nosso universo.”
Yuri Cidade
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