Tudo se desatou como um nó mal feito, distribuindo seus efeitos ao libertar meus demônios. Em sonho ou realidade, a vaidade me consumiu como consumi todas as minhas drogas. Pulei nas horas e corri pela esquina. A sina ofegante de um ser pensante me dominava no mesmo ato que se desamparavam minhas afirmações. Bases clínicas, cinéticas e cômicas de um filme realista sobre o surrealismo próprio que exponho nos meus quadros literários. Sem barco ou encanamentos, pulei da prancha e mergulhei no mar profundo, abaixo das 20000 mil léguas submarinas, em busca de um túnel que me permitisse atravessar meus vários mundos. Toquei o céu com os pés no chão e o rosto submerso no imenso universo ancorado no cais de um porto abandonado. De donzelas a piratas, com facas nos dentes, sorridentes a virar uma noite de folga. Respirei no beijo dela ao tocar sua alma com a malícia de um pequeno acrobata. As cartas perderam os endereços, e como num arremesso, fui lançado a terra novamente. Na superfície percorri quadros. De obra em obra adormeci na sociedade dos poetas mortos e amanheci na surrealidade distorcida de uma real negação a tudo que se compara a vida. Rasguei as folhas, deletei arquivos e tudo me pôs a serviço de uma caneta esferográfica mais afiada que a própria espada. A lei era a anarquia dos seres em comunhão da absolvição dos condenados a reviver o passado. O inferno se fez retratado nos rostos de cada lembrança que cortara minha mente. Dependurado e quase sem forças, cortei as cordas e mordi um pedaço de corpo que me alcançara. Nele estava tatuado silabicamente: ME AME, ME COMA, ME ESCREVA. Meus olhos tinham uma diferente visão do que realmente se escondia por trás da luneta. Como um cometa, o mar inundou o céu para que a lua iluminasse o fundo de um oceano particular. Meu lar se fez rua, castigada de almas nuas e impuras a provocar o tumulto em insulto ao silêncio. Um cheiro de incenso envolveu o ar e me transcendeu aos seus encantos. Aos prantos, uma donzela corria com suas vestes rasgadas. Pela mão me puxou e me levou de encontro a uma noitada na solitária praia dos amores nunca tidos. Carne e alma dilacerados ao destruir o pudor e gozar do néctar que o prazer nos deu. Já não entendia mais quem era eu. Apenas cumpria palavras que ninguém prometeu. Nada fora visto, filmado ou telegrafado. Os registros que apresento são apenas desconexas cenas de um acontecimento em pleno delírio. O cinismo estampado no rosto das sérias que entoavam o cântico da ilusão. Sem chão, ganhei novamente aos céus, e lá de cima anjos quebravam os relógios e rasgavam os livros divinos. “Jamais haverá novamente o destino, pois o tempo é delírio daquele que abençoa a morte.” Ventou forte. Soprou minha alma ao mais puro vazio. Um vácuo azul anil pintou minha realidade, deixando sem qualquer utilidade os sentidos que percebiam o universo. No fim das contas, tudo estava inverso e imerso na solidão azul de Picasso. Tudo tomou forma novamente: meu quarto, meu relógio, minha idade e minha sobriedade. O alarme soava tão alto quanto o grito. Mosquitos rodeavam minha cerveja pela metade. Um choque de realidade me ocorreu e me pôs em duvida, quando no meu espelho formou-se a pergunta: “voltarás a beijar a boca que te mordeu?” Em meu pescoço os dentes e na estante um bilhete:
“me acompanhes novamente quando de ti estiveres ausente
Ass: sua doentia mente”
Yuri Cidade
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