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Foto do escritorYuri Cidade

A Criação

Minha cabeça trabalhava como um cigarro mal apagado. Meu cinzeiro era a poltrona da sala, onde me afundava nos pequenos medos de grandes detalhes alheios que amparavam meu desassossego. O extremo se tornara o início de um fim próximo. O ócio tinha corroído meu tapete, o qual ostentava a sujeira de uma vida. As sinas, desatavam a rir em cada membro dormente. Meus dentes cerrados, absorviam o trago do último gole da garrafa. Sem pestanejar, o tempo batia na porta de entrada. Escorri por ela até a rua, pra ver se o ar poluído me fazia sentir vivo outra vez. Era fim do mês. Mas o ano parecia um dia, quando suas palavras vazias já não enchiam mais meu aquário. O itinerário da próxima orgia. O calendário da década passada, fazia com que as lembranças fossem apenas mudanças não concluídas. Sentei-me na calçada e notei o caos como se fosse luz. Olhando pro tudo e não vendo nada. Distraído, fui surpreendido por três camaradas. Dois brutamontes muito altos, carregando cada um um cigarro pela metade, enquanto que o do meio era baixo com um aspecto de sabichão. – Temos uma boa nova pra você – falou o mais baixo. – Ba bicho, não tô com saco pra religião hoje. Desculpa, mas não tô interessado em mudar. – Lhe trago uma proposta. – Se essa proposta for um trago, quem sabe eu até aceite. – Infelizmente não lhe trago álcool. O que lhe ofereço é um azeite para sua rotina. Ou melhor, algo que lhe tirará dela. – Meu amigo, parei com os sintéticos assim que saí da graduação. Mas agradeço. – Me tens por um traficante, sendo que o que te apresento, nenhuma droga no mundo é capaz de te dar. Te trago a clarividência. Uma chance de dispersar-se do que te formaste pelas mãos do mundo que se apresenta. – Cara, para de enrolação e vá direto ao ponto. Já estou começando a me arrepender de ter descido do meu sofá. – Queremos comprar-te a alma. – nesse momento os dois brutamontes tiraram do bolso uma caneta e um contrato. – garanto que não vai se arrepender. Surpreso, duvidando do que acabava de me dizer, disse: – Não vai dar! Minha alma simplesmente não tem valor. Já passaram por esse exato lugar o diabo, o qual bebeu meu estoque e uísque e choramingou a própria existência. E já veio aqui a morte a qual trepou comigo e desistiu de me levar. Ou seja, sou tão sem valor que nem mesmo o mais baixo escalão da pirâmide cosmológica quis me levar. Aliás, mande um abraço pros dois. – Me tomas por seres baixos? – Não, meu amigo. Te tomo no cu! Eu tenho que largar os vícios e ir procurar ajuda, porque além de enxergar coisas, eu atraio gente mais louca que eu. – Se duvidas, olhe em volta e me diga o que vê. Neste momento, olhei ao redor e tudo estava paralisado. – Ok, me convenceram. O que eu ganharia com isso? – Não ganhareis nada. Perderás tudo, voltando a ser o que realmente és. Peguei e contrato e assinei, pois já estava de saco cheio daquela ladainha. Afinal, que se foda tudo ao redor e o que vi até aqui. Precisava de algo novo, nem que pra isso teria que virar um monge. – Ok! Agora entre em nosso carro, com o qual te levaremos até local. – tudo voltara a funcionar. Os carros, as pessoas, o vento. Os dois brutamontes nos bancos da frente, e eu sentado atrás com o baixinho. Dirigiram por uma meia hora, até pararmos em frente à um prostíbulo. – Cês tão brincando né? Vendi minha alma por uma zona? Isso aí não vale nem minha mão direita. – Apenas entre. Segui os três zona à dentro. Típica visão de um bordel durante o dia: nada de mulheres nuas e apenas faxineiras limpando o lugar. Caminhamos até os fundos e adentramos em um quarto, no qual uma mulher negra estonteantemente linda, parecia que tinha saído do paraíso direto para aquele minúsculo cômodo, perfumava seus cabelos. – Deixe-nos a sós. – disse ela, e os três patetas foram embora. – Olha só, minha senhorita. Com todo respeito. Mas que diabos eu tô fazendo aqui? Ela gargalhou e disse: – Este é o seu lugar. – Mas eu esperaria um inferno com correntes, tridentes e tal, e não um inferninho onde já vim várias vezes. – Nem inferno, nem céu. Aqui é o lugar. O ínfimo de sua criatividade. Pois esta, é o que da vida ao teu mundo. Se tirá-la de ti, não sobraria um sequer desejo. Seu pesadelo é seu sonho, da maneira que o mais medonho traz à tona o que tens de melhor: as palavras de um ser humano que não finge ser o que não é. Para melhor entender, atravesse aquela porta e percorra por essa noite o mais fundo de você. Virei-me para a porta de cor madeira, respirei fundo, e atravessei. Uma sensação estranha me perturbou, deixando minha cabeça leve, porém tonta. De primeira, o que vi foram apenas uma mesa de jantar e algumas cadeiras. A pouca luz do ambiente me dava a impressão de que estaria entrando num matadouro clandestino. Aos poucos, velas foram se acendendo nas paredes e nos castiçais por cima dos móveis. Rostos se formavam perante as chamas. Damas e rapazes. Se sentavam à mesa, pessoas as quais eu comecei a reconhecer: meus personagens. Agitados, falavam sem parar, muitas vezes em tons bem altos, trocando idéias entre si, revelando detalhes uns dos outros que criei inconscientemente. As mulheres rasgavam suas roupas, acariciavam seus corpos de maneira provocante, mordiam os lábios, sorriam e pulavam pelas janelas como se fizessem um convite para pular entre suas pernas. Os homens acendiam cigarros e os apagavam nas línguas, cheiravam, bebiam, filosofavam e gozavam por todos os lados. Meus personagens faziam a orgia, a minha orgia. Beijavam, trepavam, bebiam e morriam, tornando a renascer e percorrer o mesmo caminho. Era um ciclo vicioso. Os filhos dos meus vícios literários. De início, tentei lhes impedir, mas eles resistiam, me batiam e tornavam a cometer seus pecados. Cansado, desisti de tentar mudar, de tentar mudá-los, de tentar mudar a si mesmo, e sentei-me à mesa com meus comparsas, os quais nunca me abandonaram. Abri uma das garrafas e bebi. Puxei um cigarro do vizinho, dei um tapa na bunda que passava ao lado e me deixei levar pelo ambiente. No momento, minha cabeça exalou uma felicidade inexplicavelmente digna de sorrir. Passei a interagir com eles, fazendo com que eu me tornasse parte a peça. Me senti completo e abraçado pelo mundo, como nunca me senti no mundo real que se apresentava cada vez que eu abria meus malditos olhos. Eu poderia morrer naquele momento que não haveria problema, pois eu ja não era só criador daquilo tudo, era parte do seu ecossistema. Não os conduzia mais. Eu era parte de enredo. Sem medo, agarrei os peitos das mulheres que dançavam sobre a mesa. Bebi tudo num gole só e arremessei as bitucas pelo chão. No ponto alto de todo prazer ébrio febril, gritei: – Nietzsche estava errado! Deus não está morto. EU SOU DEUS. – e pulei pela janela. Tudo se apagou. Voltei a fatídica calçada de onde tudo começou e fui surpreendido por um tapinha nas costas. – Ei, moço! – uma senhora me avisava – faz cinco minutos que tu tá olhando pro nada como se fosse um peixe morto, e seu telefone tocando. Atende essa merda, porque esse barulho já te me irritando. Mal respondi pra velha. Meio delirante ainda, atendi e uma voz feminina disse: Há uma nova mensagem de voz na caixa postal, para ouvi-la, Tecle 1. Apertei a maldita tecla e só consegui ouvir: “Criatura é o criador que cria suas crias como se fossem marionetes de si mesmo. Sobrou apenas o vazio da ligação muda ensurdecendo quem acabara de visitar a si próprio.”

Yuri Cidade

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